sexta-feira, março 31, 2006

Madrigal para a Inventada

Vou inventar uma flor
para pôr
no teu cabelo.

Uma flor com asas de lume
donde, em vez de perfume,
saiam sons de violoncelo.

E eu possa dizer à Terra:
«Sim. Bendito seja o teu ventre entre as mulheres.
Mas basta de malmequeres!»

(José Gomes Ferreira, Poeta Militante)

(pp. 319, José Gomes Ferreira, Poeta Militante, 1990, Lisboa,Publicações Dom Quixote)

quinta-feira, março 30, 2006

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

(Cecília Meireles, Antologia Poética)

quarta-feira, março 29, 2006

Homem

Inútil definir este animal aflito
Nem palavras,
nem cinzéis
nem acordes
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.

(António Gedeão, Movimento Perpétuo)

(pp.313, Maria Alberta Meneres; E.M. de Melo e Castro (Coord.). Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, 1971, Lisboa: Círculo de Poesia)

terça-feira, março 28, 2006

Adolescente - V

Ouve, meu anjo:
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
onde a saliva é de mel?

Calmo, tentou afastar-se
num sorriso desdenhoso;
mas ai!,
- a carne do assassino
é como a do virtuoso.

Numa atitude elegante,
misteriosa, gentil,
deu-me o seu corpo doirado
que eu beijei quase febril.

Na vidraça da janela,
a chuva, leve, tinia…

Ele apertou-me cerrando
os olhos para sonhar –
e eu lentamente morria
- como um perfume no ar!
(António Botto, Canções,1942)

(pp.386, Natália Correia (Coord.). Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1999, Lisboa: Antígona Frenesi)

sexta-feira, março 24, 2006

Uma qualquer pessoa

Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: é para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.

Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,
e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.

Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.
Se eu fosse a pobre criatura que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.

Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
nem o operário a quem não chega a féria.

Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que no mundo há.

E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
qualquer pessoa!
E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de frente,
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?

Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sofregamente,
como o ar se precipita
quando o espaço vazio se lhe apresenta.

(António Gedeão, Máquina de Fogo, 1961)



(pp.321, Maria Alberta Meneres; E.M. de Melo e Castro (Coord.). Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, 1971, Lisboa: Círculo de Poesia)

quinta-feira, março 23, 2006

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

(António Ramos Rosa, 1960. Viagem através duma Neblosa)

quarta-feira, março 22, 2006

Vozes estridentes, gritadas
em desalma: doem-me as
pulsões nervosas das entranhas.

(Manoel de Barros, 2000. O Encantador de Palavras. V.N. Famalicão: Quasi)

terça-feira, março 21, 2006

Balada do Amor Militante

O nosso amor é de combate. De coragem.
O nosso amor é de saudade. De cidade.
Amor sem casa amor sempre em viagem
o nosso amor é esta eternidade
de passagem.

O nosso amor é um rocinauta que não pára.
O nosso amor é de partido. De partidas.
Amor rebelde amor guerrilha amor Guevara
O nosso amor é de contínuas despedidas.

Deixa-me cantar uma canção de viajante
o nosso amor é sem rotina sem torpor
amor de todo o tempo num instante
amor por vezes sem amor
este amor militante.

(pp.228, Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia, 1995, Lisboa: Dom Quixote)

sexta-feira, março 17, 2006

Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas e correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas, órfãs de pais e de mães, andarem acossadas pelas ruas como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente, num silêncio de espanto, rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas amassando na mesma lama de extermínio os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade, enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia, o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA!

(António Gedeão, Linhas de força, 1967,Coimbra)

Manifesto Arquitectura: da Literatura

Nasceu faz muitas páginas, dançou na valsa, no bolero, na morna, na bossa nova, canta fados; não consta que tenha morrido. Agarrou-se com as unhas no mar, nas pedras, à morte e ao amor, à vida e ao escuro. Surripiou a voz às gentes e deu-lhe subtileza.
Pousou como pássaro nas mais altas árvores que o mundo viu nascer. Sorriu as deliciosas flores, rebeldes!, do campo ameno, de brisas suaves, de casa só, de pés descalços. Voltou-se ao vinho. Embebedou-se como ninguém. Foi subversiva e arrivista. Faltou jantares. Assobiou músicas proibidas de vermelho ou azul. Pintou murais vastos de fome.
Intelectualizou-se. Como dos grandes narizes que cheiram rabos mal limpos, empestados de um perfume muito caro que adivinha muitos, muitos chapéus. Chorou muito. E pôs-se mesmo a morrer. Mas foi viajar. E de entre todos os mundos, escolheu o dilúculo com mãos de sal. Por morada.
À poesia e ao seu dia no mundo prestamos uma homenagem ao piano. Com braços curtos. De vontades longas. Das mais largas florestas com muita chuva e animais e árvores muito, muito verdes e castanhas, e o açúcar, e sons, muitos sons, vindos daqui e dali e por cima, que reviram a terra húmida dos fungos. Dos rios com peixes dentro. Dos que nadam! Numa vontade natural, num acto puro de paixão. Na entrega desmesurada. Arrumando relógios no esquecimento. Com as palavras que escorrem pelas mãos. Que nos aprisionam, que nos cativam. Responsáveis para sempre. Pelo que nos plantaram.